Doutrina Dogmatica


A Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição

A Igreja sempre considerou as Sagradas Escrituras, e continua a considerar, juntamente com a Sagrada Tradição, como regra suprema da sua fé[1].
Uma só fonte da Revelação
Há uma íntima conexão entre a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição da Igreja, já que ambas brotam do único manancial divino, têm idêntico objetivo e tendem ao mesmo fim[2].
Dentro de uma correta interpretação, podemos dizer, sem receio de errar, que a Sagrada Escritura contém toda verdade revelada por Deus e que a Sagrada Tradição, sozinha, é via pela qual é possível conhecer certas verdades reveladas. Porém, essas concepções podem gerar a ideia de que existem duas fontes separadas da Revelação, o que não é certo.
Para melhor enxergar o valor individual de cada uma e assim dar-lhes o mesmo afeto e veneração, torna-se conveniente dizer que existe uma relação orgânica entre elas, uma unidade intrínseca. Ambas têm a mesma origem e inspiração divina. O que as distingue é somente o modo como comunicam as verdades.
De fato, para a vida da Igreja a Sagrada Escritura é mais acessível e prática, já que nela todos os fiéis podem encontrar num só livro – a Bíblia -, as verdades de fé e costumes que Deus quis revelar ao seu povo, a fim de transmiti-las a todos os povos. Enquanto que a Sagrada Tradição está disseminada em muitíssimas e variadas obras. Mas, sem perderem as suas diferenças e propriedades particulares, Escritura e Sagrada Tradição se unem e se fundem para construir um único depósito da Palavra de Deus[3]. Por isso, quem quiser compreender com precisão todas as questões relacionadas com a fé e os costumes, deve aferi-las com uma e com outra. Não podemos contar só com a Escritura e nem só com a Sagrada Tradição, porque não há dois rios – um escrito por inspiração divina e outro oralmente transmitido pela assistência de Deus – onde podemos beber a água viva das verdades reveladas, mas há uma só torrente, formada por essas duas correntes que se juntam e se integram.
A fonte única do sistema é Cristo, o Verbo Encarnado, verdadeira Palavra de Deus enviada aos homens, plenitude da Revelação. Dessa fonte emanam, para formar um só manancial, a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição, unidas como as águas de um rio o estão ao seu leito. Assim, é impossível conceber uma Escritura independente da Sagrada Tradição, nem uma Sagrada Tradição independente da Escritura. Não há necessidade de subordinar para unir, nem de separar para distinguir. Ambas são e formam a vida da Igreja.
A Sagrada Tradição explica as Escrituras santas
A Sagrada Tradição da Igreja é onde melhor encontramos a interpretação e compreensão correta daquilo que Deus diz na Sagrada Escritura e de onde extraímos as certezas de todas as verdades reveladas por Ele e que não podem ser conhecidas apenas com as Escrituras. E isso é assim por estar na Sagrada Tradição a condensação dos estudos e escritos que os santos dos primeiros séculos do cristianismo fizeram das divinas letras.
Esses homens, ainda que menos imbuídos de erudição profana e de conhecimento de línguas que os estudiosos modernos, no entanto, se distinguem por certa suave perspicácia das coisas celestes e pela agudeza de raciocínio, pelas quais penetram nas profundidades da palavra divina e põem em evidência tudo quanto pode conduzir ao conhecimento da doutrina de Cristo e à santidade[4].
A Escritura, além do mais, necessita da Sagrada Tradição para que conheçamos a sua existência, a sua legitimidade, a sua autenticidade e a sua integridade[5].
Por outro lado, a Sagrada Tradição não poderia dar vida à Igreja se estivesse à margem da Sagrada Escritura, já que não foi assim que atuaram os seus testemunhos, que em seus escritos mostram extraordinariamente como amaram os livros santos.
E para entender definitivamente a união inseparável que há entre a Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura, basta que digamos que a Sagrada Tradição não é outra coisa que a mesma vida da Igreja. Vida que se desenvolve e continua a se desenvolver organicamente desde seu nascimento, passando pelos escritos de pessoas santas, que souberam aproveitar-se dos tesouros contidos nos livros sagrados para enriquecer e dar vigor à Igreja. Vida que o Magistério Eclesiástico incrementa com o alento dado pelo Espírito, que é quem, da parte de Jesus Cristo, ensina a verdade (cfr Jo 14, 15-26).
Por tanto, não há nenhuma sombra de dúvida de que a Sagrada Tradição não só produz um influxo vital para a vida da Igreja, se não que é a mesma vida da Igreja, porque, intimamente unida e compenetrada com a Sagrada Escritura, busca a gloria de Deus e a participação de toda a criação nessa gloria.
Daí que a Igreja, no empenho de tronar prática as aportações do Concílio Vaticano II, tem estudado e atualizado os seus documentos, como o fez no último Sínodo sobre a Palavra. E fruto desse empenho são estas palavras do Papa Bento XVI: “é importante que o Povo de Deus seja educado e formado claramente para se abeirar das Sagradas Escrituras na sua relação com a Tradição viva da Igreja, reconhecendo nelas a própria Palavra de Deus. É muito importante, do ponto de vista da vida espiritual, fazer crescer esta atitude nos fiéis”[6].

[1] Constituição “Dei Verbum”, n. 21
[2] Constituição “Dei Verbum”, n. 9
[3] Constituição “Dei Verbum”,, n 10
[4] Cfr. Papa Pio XII, “Divino afflante Spiritu”, em Enchiridion Biblicum, n. 554, pp. 219-220.
[5] Constituição “Dei Verbum”, n. 8
[6] Papa Bento XVI, Exortação Apostólica Pós Sinodal “Verbum domini”, n. 18.


A Santíssima Trindade

É o mistério central da fé e da vida cristã. Os cristãos são batizados em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
1. A revelação do Deus uno e trino
“O mistério central da fé e da vida cristã é o mistério da Santíssima Trindade. Os cristãos são batizados em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Compêndio, 44). Toda a vida de Jesus é revelação de Deus Uno e Trino: na anunciação, no nascimento, no episódio de sua perda e encontro no Templo quando tinha doze anos, em sua morte e ressurreição, Jesus se revela como Filho de Deus de uma forma nova com relação à filiação conhecida por Israel. No início de sua vida pública, também no momento de seu batismo, o próprio Pai testemunha ao mundo que Cristo é o Filho Amado (cfr. Mt 3, 13-17 e par.) e o Espírito desce sobre Ele em forma de pomba. A esta primeira revelação explícita da Trindade corresponde a manifestação paralela na Transfiguração, que introduz o mistério Pascal (cfr. Mt 17, 1- 5 e par.). Finalmente, ao despedir-se de seus discípulos, Jesus os envia a batizar em nome das três Pessoas divinas, para que seja comunicada a todo o mundo a vida eterna do Pai, do Filho e do Espírito Santo (cfr. Mt 28, 19).
No Antigo Testamento, Deus havia revelado sua unicidade e seu amor para com o povo eleito: Javé era como um Pai. Mas depois de haver falado muitas vezes por meio dos profetas, Deus falou por meio de seu Filho (cfr. Hb 1, 1-2), revelando que Javé não é apenas como um Pai, mas que é Pai (cfr. Compêndio, 46). Jesus se dirige a Ele em sua oração com o termo aramaico Abba, usado pelos meninos israelitas para se dirigirem ao próprio pai (cfr. Mc 14, 36), e distingue sempre sua filiação daquela dos discípulos. Isto é tão chocante que se pode dizer que a verdadeira razão da crucificação é justamente o chamar-se a si mesmo Filho de Deus em sentido único. Trata-se de uma revelação definitiva e imediata [1], porque Deus se revela com sua Palavra: não podemos esperar outra revelação, porquanto Cristo é Deus (cfr., por ex., Jo20, 17) que se nos dá, inserindo-nos na vida que emana do regaço de seu Pai.
Em Cristo, Deus abre e entrega sua intimidade, que seria inacessível ao homem pelas próprias forças somente [2]. Esta mesma revelação é um ato de amor, porque o Deus pessoal do Antigo Testamento abre livremente seu coração e o Unigênito do Pai sai ao nosso encontro, para fazer-se uma só coisa conosco e levar-nos de volta ao Pai (cfr. Jo 1, 18). Trata-se de algo que a filosofia não podia adivinhar, pois, fundamentalmente, só se pode conhecer mediante a fé.
2. Deus em sua vida íntima
Deus não só possui uma vida íntima, mas Deus é – identifica-se – com sua vida íntima, uma vida caracterizada por eternas relações vitais de conhecimento e de amor, que nos levam a expressar o mistério da divindade em termos de processões.
De fato, os nomes revelados das três Pessoas divinas exigem que se pense em Deus como o proceder eterno do Filho do Pai e, na mútua relação – também eterna – do Amor que “sai do Pai” (Jo 15, 26) e “toma do Filho” (Jo 16,14), que é o Espírito Santo. A Revelação nos fala, assim, de duas processões em Deus: a geração do Verbo (cfr. Jo 17.6) e a processão do Espírito Santo. Com a característica peculiar de que ambas são relações imanentes, porque estão em Deus: mais, são o próprio Deus, uma vez que Deus é Pessoal; quando falamos de processão, pensamos ordinariamente em algo que sai de outro e implica mudança e movimento. Posto que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus Uno e Trino (cfr. Gn1, 26-27), a melhor analogia com as processões divinas pode ser encontrada no espírito humano, em que o conhecimento que temos de nós mesmos não sai para fora: o conceito (a idéia) que fazemos de nós mesmos é distinta de nós mesmos, mas não está fora de nós. O mesmo podemos dizer do amor que temos para conosco. De forma parecida, em Deus, o Filho procede do Pai e é sua Imagem, analogamente como o conceito é imagem da realidade conhecida. Só que esta imagem em Deus é tão perfeita que é o próprio Deus, com toda sua infinitude, sua eternidade, sua onipotência: o Filho é uma só coisa com o Pai, o mesmo Algo, essa é a única e indivisa natureza divina, ainda que sendo outro Alguém. O Símbolo Niceno-Constantinopolitano o expressa com a fórmula “Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”. O fato é que o Pai gera o Filho, doando-se a Ele, entregando-Lhe Sua substância e Sua natureza; não em parte como acontece com a geração humana, mas perfeita e infinitamente.
O mesmo pode ser dito acerca do Espírito Santo, que procede como o Amor do Pai e do Filho. Procede de ambos, porque é o dom eterno e incriado que o Pai entrega ao Filho, gerando-o, e que o Filho devolve ao Pai como resposta a Seu Amor. Este dom é dom de si, porque o Pai gera o Filho comunicando-lhe total e perfeitamente seu próprio Ser mediante seu Espírito. A terceira Pessoa é, portanto, o Amor mútuo entre o Pai e o Filho [3]. O nome técnico desta segunda processão é expiração. Seguindo a analogia do conhecimento e do amor, pode-se dizer que o Espírito age como a vontade que se move em direção ao Bem conhecido.
Estas duas processões chamam-se imanentes, e se diferenciam radicalmente da criação, que étranseunte, no sentido de que é algo que Deus realiza fora de si. Ao serem processões, dão conta da distinção em Deus, enquanto que, ao serem imanentes, dão razão da unidade. Por isso, o mistério do Deus Uno e Trino não pode ser reduzido a uma unidade sem distinções, como se as três Pessoas fossem apenas três máscaras; ou a três seres sem unidade perfeita, como se se tratasse de três deuses distintos, ainda que juntos.
As duas processões são o fundamento das distintas relações que em Deus se identificam com as Pessoas divinas: o ser Pai, o ser Filho e o ser expirado por Eles. De fato, como não é possível ser pai e ser filho da mesma pessoa, no mesmo sentido, assim, não é possível ser, ao mesmo tempo, a Pessoa que procede pela expiração e as duas Pessoas das quais procede. Convém esclarecer que, no mundo criado, as relações são acidentes, no sentido de que suas relações não se identificam com seu ser, ainda que o caracterizem profundamente, como no caso da filiação. Em Deus, posto que nas processões é doada toda a substância divina, as relações são eternas e se identificam com a própria substância.
Estas três relações eternas não só caracterizam, mas também se identificam com as três Pessoas divinas, posto que pensar no Pai significa pensar no Filho; e pensar no Espírito Santo, significa pensar naqueles em relação aos quais Ele é Espírito. Assim, as três Pessoas divinas são três Alguém, mas um único Deus. Não como se dá entre os homens que participam da mesma natureza humana, sem esgotá-la. As três Pessoas são cada uma toda a Divindade, identificando-se com a única Natureza de Deus [4]: as Pessoas são Uma na Outra. Por isso, Jesus disse a Felipe que quem O viu, viu o Pai (cfr. Jo 14, 6), posto que Ele e o Pai são uma só coisa (cfr. Jo 10, 30 e 17, 21). Esta dinâmica, que se chama tecnicamente pericoresis oucircumincessão (dois termos que fazem referência a um movimento dinâmico em que um se intercambia com o outro como em uma dança em círculo), ajuda a perceber que o mistério de Deus Uno e Trino é o mistério do Amor: “Ele mesmo é uma eterna comunicação de amor: Pai, Filho e Espírito Santo, e nos destinou a participar n’Ele” (Catecismo, 221).
3. Nossa vida em Deus
Sendo Deus eterna comunicação de Amor, é compreensível que esse Amor se extravase fora d’Ele em seu agir. Toda a ação de Deus na história é obra conjunta das três Pessoas, posto que se distinguem somente no interior de Deus. Não obstante, cada uma imprime nas ações divinas ad extra sua característica pessoal [5]. Usando uma imagem, poder-se-ia dizer que a ação divina é sempre única, como o dom que nós poderíamos receber da parte de uma família amiga, que é fruto de um só ato; mas, para quem conhece as pessoas que constituem a família, é possível reconhecer a mão ou a intervenção de cada uma, pela marca pessoal deixada por cada uma no único presente.
Este reconhecimento é possível porque conhecemos as Pessoas divinas naquilo que as distingue pessoalmente, mediante suas missões, quando Deus Pai enviou, juntamente o Filho e o Espírito Santo, na história (cfr. Jo 3, 16-17 e 14-26), para que se fizessem presentes entre os homens: “são, principalmente, as missões divinas da Encarnação do Filho e do dom do Espírito Santo as que manifestam as propriedades das Pessoas divinas” (Catecismo, 258). Eles são como as duas mãos do Pai [6] que abraçam os homens de todos os tempos, para levá-los ao seio do Pai. Se Deus está presente em todos os seres enquanto princípio do que existe, com as missões o Filho e o Espírito Santo se fazem presentes de forma nova [7]. A própria Cruz de Cristo manifesta ao homem de todos os tempos o eterno dom que Deus faz de Si mesmo, revelando em sua morte a íntima dinâmica de seu Amor que une as três Pessoas.
Isto significa que o sentido último da realidade, aquilo que todo homem deseja, o que foi buscado pelos filósofos e pelas religiões de todos os tempos, é o mistério do Pai que gera o Filho, no Amor, que é o Espírito Santo. Na Trindade se encontra, assim, o modelo originário da família humana [8] e sua vida íntima é a aspiração verdadeira de todo amor humano. Deus quer que todos os homens constituam uma só família, isto é, uma só coisa com Ele mesmo, sendo filhos no Filho. Cada pessoa foi criada à imagem e semelhança da Trindade (cfr. Gn 1, 27) e está feita para existir em comunhão com os demais homens, e, sobretudo, com o Pai celestial. Aqui se encontra o fundamento último do valor da vida de cada pessoa humana, independentemente de suas capacidades ou de suas riquezas.
Mas o acesso ao Pai só se pode encontrar em Cristo, Caminho, Verdade e Vida (cfr. Jo14, 6): mediante a graça, os homens podem chegar a ser um só corpo místico na comunhão da Igreja. Através da contemplação da vida de Cristo e através dos sacramentos, temos acesso à própria vida íntima de Deus. Pelo Batismo, somos enxertados na dinâmica de Amor da família das três Pessoas divinas. Por isso, na vida cristã, trata-se de descobrir que, a partir da existência ordinária, das múltiplas relações que estabelecemos, e de nossa vida familiar, que teve seu modelo perfeito na Sagrada Família de Nazaré, podemos chegar a Deus: “Procura o convívio com as três Pessoas, com Deus Pai, com Deus Filho, com Deus Espírito Santo. E para chegares à Trindade Santíssima, passa por Maria” [9]. Deste modo, pode-se descobrir o sentido da história, como caminho da trindade à Trindade, aprendendo com a “trindade da terra” – Jesus, Maria e José – a levantar o olhar para a Trindade do Céu.
Giulio Maspero
Bibliografía básica
Catecismo da Igreja Católica, 232-267.
Compendio do Catecismo da Igreja Católica, 44-49.
Leituras recomendadas
São Josemaria, Homilia “Humildade”, Amigos de Deus, 104-109.
J. Ratzinger, El Dios de los cristianos. Meditaciones, Ed. Sígueme, Salamanca 2005.
[1] Cfr. São Tomás de Aquino, In Epist. Ad Gal., c. 1, lect. 2.
[2] “Deus deixou marcas de seu ser trinitário na criação e no Antigo Testamento, mas a intimidade de seu ser como Trindade Santa constitui um mistério inacessível à razão humana sozinha e, inclusive, à fé de Israel, antes da Encarnação do Filho de Deus e do envio do Espírito Santo. Este mistério foi revelado por Jesus Cristo, e é a fonte de todos os demais mistérios” (Compêndio, 45).
[3] “O Espírito Santo é a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade. É Deus, uno e igual ao Pai e ao Filho; ‘procede do Pai’ (Jo, 15, 26), o qual é princípio sem princípio e origem de toda a vida trinitária. E procede também do Filho (Filioque), pelo dom eterno que o Pai faz ao Filho. O Espírito Santo, enviado pelo Pai e pelo Filho encarnado, guia a Igreja até o conhecimento da ‘verdade plena’ (Jo 16, 13)” (Compêndio, 47).
[4] “A Igreja expressa sua fé trinitária confessando um só Deus em três Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. As três divinas Pessoas são um só Deus porque cada uma delas é idêntica à plenitude da única e indivisível natureza divina. As três são realmente distintas entre si por suas relações recíprocas: o Pai gera o Filho, o Filho é gerado pelo Pai, o Espírito Santo procede do Pai e do Filho” (Compêndio, 48).
[5] “Inseparáveis em sua única substância, as divinas pessoas são também inseparáveis em seu agir: a Trindade tem uma só e mesma operação. Mas, no único agir divino, cada pessoa se faz presente segundo o modo que lhe é próprio na Trindade” (Compêndio, 49).
[6] Cfr. Santo Irineu, Adversus haereses, IV, 20, 1.
[7] Cfr. São Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I, q. 43, a. 1, c. y a. 2, ad. 3.
[8] “O ‘Nós’ divino constitui o modelo eterno do ‘nós’ humano; primeiramente daquele ‘nós’ que está formado pelo homem e a mulher, criados à imagem e semelhança de Deus” ( João Paulo II,Carta às famílias, 2-2-1994, 6).
[9] São Josemaria Escrivá, Forja, 543.
Fonte: Opus Dei

Pode-se adorar a santa cruz?

Por Pe. Francoá Costa
Sempre me deixou impressionado as palavras que a Liturgia da sexta-feira santa usa ao referir-se ao culto à Cruz: “solene adoração da santa Cruz”, deixando inclusive a possibilidade de dobrar o joelho diante dela. Penso que essas palavras calaram no coração de mais de um cristão deixando-o pensativo. A reflexão teológica que segue é – aceitando com alegria e admiração o que a Igreja em sua liturgia nos traz – uma tentativa de entender melhor a fé expressada na oração da Igreja, e espero não confundir mais a cabeça do leitor. Pode-se adorar a Cruz? Em que sentido? Parece-me ver uma explicação bastante satisfatória numas palavras de um teólogo muito recomendado pela mesma Igreja. 
Santo Tomás de Aquino estuda a “adoração” na terceira parte da Suma de Teologia, na questão 25. Vamos segui-lo passo a passo. Ao chegar no quarto artigo dessa questão encontramo-nos com uma excelente definição de adoração, tal como é entendido no sentido comum atual. Santo Tomás diz que adoração é colocar nossa esperança de salvação em alguém. A Deus damos adoração por que é o nosso Criador, daí que a adoração só se deve dar ao Deus Uno e Trino, esse é um principio claro que devemos ter conosco durante todo esse estudo: só a Deus se deve a adoração, porque Ele é o nosso Criador, nós somos suas criaturas, e nEle pomos nossa esperança de salvação. Salvadas essas preliminares, vamos à nossa questão. Procurarei fazer acessível o pensamento de Santo Tomás sabendo que não é tarefa fácil. É preciso fazer esse estudo com muita concentração. 
Em primeiro lugar, a fé cristã diz que em Cristo há uma única Pessoa, a Segunda da Trindade, que é divina, e duas naturezas, a humana e a divina, que estão unidas nessa única Pessoa divina (Concilio de Calcedônia, ano 451). No primeiro artigo Santo Tomás se pergunta se a adoração que se dá à Humanidade de Cristo é a mesma que se dá à sua Divindade. E como objeção se poderia dizer que a Humanidade de Cristo não é comum a Ele e ao Pai, como o é a Divindade. Tomás de Aquino começa por dizer que na honra que se dar a uma determinada realidade há que considerar duas coisas: a realidade honrada e a causa dessa honra. Quanto à primeira, é preciso dizer que a honra que se deve, por exemplo a uma pessoa, é devida a toda a pessoa, não só à sua mão ou ao seu pé, a uma parte; se por algum motivo alguém dissesse que honra a mão ou outra parte de alguém só o faria em razão de toda a pessoa, in istis partibus honoratur totum, nessas partes se honraria toda a realidade. Quando à segunda, a causa da honra encontra sua justificação na excelência da pessoa honrada. E conclui o nosso teólogo: como em Cristo há uma única Pessoa, a divina, na qual estão unidas a natureza humana e a natureza divina, a Cristo se dá uma única adoração em razão de sua única Pessoa e, por tanto, ao adorar uma parte de Cristo, adoramos todo o Cristo. 
No artigo segundo, Tomás de Aquino dá um passo a mais. Já sabemos que à Humanidade e à Divindade de Cristo se dá uma mesma adoração e glória em razão da única Pessoa de Cristo. Mas, será que se pode dizer que a adoração que se dá à Humanidade de Cristo é adoração de “latria”, isto é, a adoração devida só a Deus, ao qual o homem se entrega colocando sua esperança de salvação? Considerando que a Encarnação é para sempre, ou seja, a Humanidade e a Divindade em Cristo desde a Encarnação nunca se separaram e jamais se separarão (nem mesmo na morte de Cristo, já que a morte é a separação de corpo e alma, o que se deu em Cristo, não da Humanidade e da Divindade, o que não se deu em Cristo), a pergunta pareceria sem sentido. No entanto, na hipótese de uma consideração separada, diz Santo Tomás de Aquino que se deve considerar a adoração à Humanidade de Cristo de duas maneiras. Em primeiro lugar: a adoração que se dá à Humanidade de Cristo em razão de sua união à Pessoa divina; nesse caso, se trata de uma verdadeira adoração de “latria” à sua Santíssima Humanidade já que ao adorá-la estamos adorando o mesmo Verbo de Deus encarnado. Nesse sentido, diz São João Damasceno que se adora a carne de Cristo não por causa da carne em si mesma, mas por que está unida à pessoa do Verbo de Deus. A segunda consideração é a respeito da adoração que se deve à Humanidade de Cristo por causa das perfeições dessa Humanidade em quanto cheia de todos os dons da graça; nesse sentido se deve adorá-la “adoratione duliae”, com uma adoração de dulia, ou seja com a adoração que se dá às criaturas (a Humanidade de Cristo foi criada); na resposta à primeira objeção, Santo Tomás dirá com mais precisão que à Humanidade de Cristo considerada separadamente se deve dar uma adoração de “hiperdulia”. 
Chegados aqui o leitor poderia assustar-se: Santo Tomás de Aquino diz que se deve adorar às criaturas? Não. Tomás de Aquino simplesmente mostra que na sua época a palavra adoração não tinha a mesma carga que tem nos nossos dias. Para ele adoração é o mesmo que “honra”, nesse sentido o determinante nessa questão não é a adoração, mas a “latria”, que é a o tipo de adoração que se deve só a Deus;  a adoração de “dulia” é para ele o que nós hoje em dia conhecemos como “veneração”; finalmente a adoração de “hiperdulia”, que seria uma “veneração especial”. Um exemplo: cantamos no Hino Nacional referindo-no ao Brasil as seguintes palavras: “Ó terra amada, idolatrada”. Será que estamos idolatrando a nossa Pátria? Claro que não. Quando dizemos “terra idolatrada” referindo-nos ao Brasil queremos dizer simplesmente que o nosso País é-nos muito querido, estamos simplesmente cumprindo com o quarto mandamento que inclui a amor à Pátria. Que perigo seria ficar só nas palavras sem dar-nos conta do sentido que elas nos trazem! Cada palavra quer significar uma realidade e não podemos simplesmente ficar preso à palavra em si, mas procurar chegar à realidade que essa palavra nos quer transmitir. 
Continuemos com Santo Tomás. Nesse terceiro momento (art.3) nos aproximamos mais da nossa questão. A pergunta agora é se um cristão pode adorar com adoração de latria as imagens de Cristo. Tomás de Aquino, como bom cristão, tem horror à idolatria. A resposta do Santo Doutor se compreende ao olhar tanto a Cristo, Verbo de Deus encarnado, quanto ao movimento da nossa alma ao adorá-lo. Tomás de Aquino diz claramente que  a reverência é algo devido apenas às criaturas racionais, não às coisas. No entanto, fixando-nos nesse movimento da nossa alma quando olha uma imagem, percebemos que olhamos a imagem não só como uma coisa, um pedaço de madeira por exemplo, mas também como imagem de outra realidade. Quando olhamos uma imagem de Cristo, o movimento da nossa alma é aquele que vê a imagem em quanto imagem, ou seja, em quanto imagem de uma outra realidade. Diz Santo Tomás que esse movimento de ver a imagem de Cristo em quanto imagem da Pessoa de Cristo faz com que estejamos voltados ao mesmo Cristo, de tal maneira que à imagem em quanto imagem se deve a mesma adoração que se dá à realidade, já que esse movimento da nossa alma vê na imagem a realidade, não o pedaço de madeira, por exemplo. Não acontece o mesmo se olhamos a imagem em quanto um pedaço de madeira, nesse caso não se deve dar-lhe nenhuma reverência, já que a reverência é dada tão somente às criaturas racionais. Conclusão: às imagens de Cristo em quanto “imagens” de Cristo devemos dar adoração de latria, pois essa adoração não fica na imagem, mas se dirige à realidade, que é Cristo mesmo. 
Mas alguém poderia dizer que essa é uma doutrina estranha e que não está na Escritura Santa. Em primeiro lugar, a Igreja Católica não tem como único veículo da Divina Revelação apenas a Escritura (esse é um principio protestante, a sola Scriptura), mas também da Tradição. Diz Tomás de Aquino na resposta à quarta objeção: “por um instinto familiar do Espírito Santo, certas Igrejas conservaram tradições que não estão escritas, mas colocadas para serem observadas pelos fiéis. O mesmo São Paulo diz aos Tessalonicenses: “ficai firmes e conservai os ensinamentos que de nós aprendestes, seja por palavras, seja por carta nossa” (2,15). E entre essas tradições se encontra a adoração das imagens de Cristo”. 
Santo Tomás de Aquino vai descendo a questões mais concretas e se pergunta se à Cruz de Cristo se deve adorar com adoração de latria. O leitor perceberá que no fundo a nossa pergunta inicial já foi respondida. Esqueceu-se da pergunta? Pode-se adorar a Santa Cruz? Mas talvez passou despercebida a resposta. Temos a oportunidade de tratá-la agora diretamente. 
Já ficou claro que apenas aos seres racionais se dá alguma reverência; às coisas, nenhuma, a não ser em razão da natureza racional, nesse sentido, diz Tomás de Aquino, que quando os homens veneravam as vestes do rei queriam simbolizar através desse ato uma veneração ao mesmo rei. Existe um segundo tipo de veneração que se pode dar a uma coisa: aquela que se dá em razão da união que guarda com a realidade em quanto que a realidade entrou em contato (físico) com a imagem. Se nos referimos à mesma Cruz na qual Cristo foi crucificado, pensamos no Cristo nela estendido, a Cruz entrou em contato com os membros santíssimos de Cristo, nela o seu Sangue preciosíssimo foi derramado. Por tanto, à Cruz na qual Cristo foi crucificado devemos dar adoração de latria. O que acontece é que, em quanto às outras imagens de Cristo crucificado, adoramos com adoração de latria somente em razão desse movimento segundo o qual a nossa alma não fica parada na imagem, mas se dirige à mesma realidade, que é a Pessoa de Cristo, a Cruz na qual Cristo foi crucificado tem também um significado todo especial a causa do contato com os membros santíssimos do único Redendor dos homens, Jesus Cristo. Penso que com isso a nossa pergunta inicial recebe resposta pela segunda vez: realmente a Igreja adora a Santa Cruz porque vê nela não o objeto material em si, mas o que ela significa, Jesus Cristo crucificado, nosso único Salvador. 
E se alguém se escandaliza ainda com essa expressão, talvez bastaria citar a São Paulo: “mas nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos; mas, para os eleitos – quer judeus quer gregos –, força de Deus e sabedoria de Deus” (1 Cor 1,23-24). Por outro lado, não o nego, ver uma imagem em quanto imagem e vê-la apenas em quanto um pedaço de pau são movimentos espontâneos da nossa alma, mas à hora de fazer uma reflexão sobre isso encontramo-nos com verdadeiras dificuldades de compreensão. Mas, sejamos honestos: quando nós não entendemos uma coisa não podemos dizer que essa coisa não é assim só porque nós não a entendemos, simplesmente não entendemos. Isso parece-me de bom senso! 
Com os princípios a postos, o artigo quinto e o sexto desta questão responderão que à Mãe de Deus, Maria, e aos outros Santos e suas relíquias, jamais se deve adorar com adoração de latria, isso seria idolatria, mas apenas com o que nós chamamos hoje em dia de veneração e que Santo Tomás chamaria de “adoração de hiperdulia” para Nossa Senhora e “adoração de dulia” para os Santos. Penso que não seria demasiado recordar que a palavra “adoração” para Santo Tomás significa “honra, veneração, respeito”, o que determina é se essa honra é de latria ou de hiperdulia ou de dulia. 
Sinto muito se a leitura desse pequeno artigo o deixou mais confuso. Acho que com uma segunda ou terceira leitura se poderia entender melhor. Se não, remito à questão da Suma de Teologia, III parte, questão 25. Para terminar, baste o que a Igreja nos diz e que expressa a sua fé: “Crucem tuam adoramus, Domine, et sanctam ressurrectionem tuam laudamus et glorificamus: ecce enim propter lignum venit gaudium in universo mundo” : adoramos, Senhor, a tua Cruz, e louvamos e glorificamos a tua santa ressurreição: por causa do lenho da Cruz vem a todo o mundo o gozo (Ant.1ª para ser cantada enquanto se adora a Santa Cruz).


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